É HORA DE A HORA DA ESTRELA,DE CLARICE LISPECTOR

É HORA DE A HORA DA ESTRELA,DE CLARICE LISPECTOR

Vinícius Linné

  1. Pra começar (ou continuar)…

Clarice Lispector (1920-1977) é famosa na internet, especialmente por conta de frases apócrifas, ou seja, aquelas que não foram escritas por ela, mas que mesmo assim seguem compartilhadas com a sua assinatura. Apesar de ter muitos fãs, ainda há poucos leitores que se aventuram, de fato, em suas obras.

Quem o faz, descobre todo um universo impensado. Então é isso a Literatura? Então aquilo que sentimos também se pode escrever? Estas foram as sensações que eu tive, ainda adolescente, ao ler sua obra pela primeira vez. De todas, a história de Macabéa foi a que se instalou mais fundo em mim, entre um estranhamento muito grande e um sentimento forte de contradição. Amor e ódio se misturavam, ambos intensos. Macabéa, a protagonista de A hora da estrela é insossa, e tímida e humilde e humilhada e triste e sozinha. Macabéa sou eu, em alguns momentos obscuros. Ler este livro, portanto, foi um encontro.

Eu sei. Sei que cada um tem seu próprio trajeto para chegar até ela, mas compartilho o meu como receita, para se chegar sem sustos. Embora o filme de 1985, baseado na obra, seja um primor, recomendo antes de tudo a versão feita para o programa Cena Aberta, da Rede Globo, em 2003. Neste episódio, o erudito e o popular se misturam de forma linda, especialmente ao trazer tantas Macabéas à tona, cada uma com sua singularidade, suas lágrimas e seus sorrisos. Sem dúvida, para quem nunca teve contato com Lispector, este é um bom começo, para reparar na beleza do texto, no quão comovente e até cômico ele é. O programa está disponível no Youtube e é um aperitivo de peso para a leitura e a compreensão do livro: https://www.youtube.com/watch?v=O8Abw_Cm6HE&list=PLCF08A0A117974216. 

  1. Razões para ler “A hora da estrela”, de Clarice Lispector.

Atravessamos tempos de ódio, isso é tão triste quanto inegável. E não se trata de um ódio velado, exercido só na escuridão que nos há por dentro do corpo. Não. Este é um tempo em que o ódio flamula como bandeira, hasteando na frente dos batalhões de guerra. Guerra por quê? Guerra contra quem é a pergunta. E qualquer rede social nos dá a resposta. Ora os inimigos são os “nordestinos burros”, ora os “parasitas do bolsa família”, mas sempre são menores, os pobres, de preferência.

Parecemos ter esquecido, como no poema “Descobrimento”, de Mário de Andrade, que toda essa gente é tão brasileira quanto nós. Mais ainda: é tão humana quanto nós. Neste cenário de horror, ainda bem que há a Literatura como luz, como encontro. Para mim, o principal motivo para se ler “A hora da estrela” é justamente este: o de descobrir que há vida pulsando fora de nós também. Humanidade, existência, sentimentos, tudo dentro dos outros. Mergulhar em Macabéa é ter acesso ao centro do que hoje se odeia. É ver por dentro uma mulher, que além de mulher é pobre. E além de pobre é nordestina. E além de nordestina é ignorante. Mas além, muito além de tudo isso, é humana, profundamente humana.

É do humano que primeiro nos esquecemos enquanto odiamos. Mas Clarice Lispector nos lembra dele. Depois de ter apanhado no ar de uma moça na rua esse sentimento de inadequação, a escritora teceu uma história rica, essencial. Essencial não só para conhecer Literatura, não para passar no vestibular, mas para viver. Para tocar uma existência alheia, tão miserável que dá, sim, raiva. Pela passividade, pela falta de revolta, de grito mesmo, mas que também dá muita pena. E se fosse comigo? E se fosse eu, com tanta fome a ponto de querer comer creme de beleza? E se fosse eu, meio carola, meio perdida, mas completamente sozinha? E se fosse minha a inocência pisada?

Este livro serve para que nos lembremos de que somos privilegiados e, mais importante ainda, de que há os que não são. Há vidas que, como escreve Clarice, poderiam ser facilmente substituídas, que tanto faz existirem ou não, de tão baixo que falam. Em algum momento da narrativa, me deparei com a seguinte questão: “O que fazer com a verdade de que todo mundo é um pouco triste e um pouco só?” Quanto a tristeza eu não sei, ainda, o que fazer, mas contra a solidão meu antídoto sempre foi ler. É nos livros que está o encontro essencial com o outro. Conhecer Macabéa é isso, é encontrar, é ver a vida por dentro e se identificar com o que há de mais sublime e de mais chã na existência humana. E como precisamos disso quando o ódio impera.

  1. Perguntas Frequentes

a. É difícil de se ler Clarice Lispector?

É diferente. Para quem está acostumado a best-sellers, com uma ordem cronológica exata, explicações bem detalhadas e uma trama toda fechada, Lispector pode, sim, ser um choque. Por adotar uma perspectiva intimista, as marcações de tempo e espaço se perdem para privilegiar o fluxo de consciência. Mais do que os fatos, os pensamentos é que importam, as divagações, as reflexões sobre o que há de mais banal e que pode gerar ecos sublimes por dentro. Passado o susto, o que se descobre é uma escrita simples, mas de ideias muito ricas, que explicam o porquê de tantas frases da autora ecoarem nas redes sociais. Enfim, como a própria Clarice definiu, seu texto é mais uma questão de sentir do que de racionalizar: “Suponho que me entender não é uma questão de inteligência e sim de sentir, de entrar em contato. Ou toca, ou não toca.”

b. De onde vem o nome “Macabéa”?

Até Olímpico, seu par quase romântico, ao ser apresentado a ela estranha este nome. “Maca o quê?”, pergunta ele. “Béa”, ela responde. No livro, a explicação para esta estranha alcunha é uma promessa, feita pela mãe da personagem à Nossa Senhora da Boa Morte, para que a menina vingasse. Estudos sobre a obra de Clarice, porém, apontam outra origem para o termo. Macabéa faria alusão aos Macabeus, segundo Nádia Battella Gotlib, biógrafa da autora: “gente forte que resistiu aos gregos defendendo o templo no Monte Sião e recusando-se a desobedecer as leis judaicas.”

 


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