Ivânia Campigotto Aquino
Desde quando eu era deste tamanhinho, bem pequeninha, eu queria ser escritora. Não queria ser outra coisa, se me perguntassem, e tampouco sabia dizer o motivo. Mas eu queria escrever. Não só escrever: queria viver disso. Quis o destino que muito tarde eu concretizasse meu sonho: muita coisa aconteceu e eu não pude me dedicar ao que gostaria de fazer. Precisava cumprir o lado prático da existência, viver, tentar me assentar no mundo feito gente. Dei aula, fui comerciante, assessora de imprensa, revisora, desempregada — uma coisa angustiada, que não sabia pra onde ir nem como ganhar a vida. (…). Hoje eu sou uma escritora.
Cíntia Moscovich
- Pra começar (ou continuar)…
O conto, como gênero, convive, ainda hoje, com uma complexidade de conceituação. Machado de Assis (1839-1908) enfrentava a questão ao produzir suas histórias curtas, sugerindo que seria inútil discutir definição do gênero. Registra ele na abertura, intitulada “Advertência”, de seu livro Papéis avulsos (1882):
Quanto ao gênero deles, não sei que diga que não seja inútil. O livro está nas mãos do leitor. Direi somente, que se há aqui páginas que parecem meros contos e outras que o não são, defendo-me das segundas com dizer que os leitores das outras podem achar nelas algum interesse, e das primeiras defendo-me com São João e Diderot. O evangelista, descrevendo a famosa besta apocalíptica, acrescentava (XVII, 9): “E aqui há sentido, que tem sabedoria”. Menos a sabedoria, cubro-me com aquela palavra. Quanto a Diderot, ninguém ignora que ele, não só escrevia contos, e alguns deliciosos, mas até aconselhava a um amigo que os escrevesse também” (ASSIS, 2011).
Importava ao escritor, de fato, a produção das histórias. Nesse sentido, ele exalta o conto: “É que quando se faz um conto, o espírito fica alegre, o tempo escoa-se, e o conto da vida acaba, sem a gente se dar por isso.” Mais tarde, já no Modernismo, Mario de Andrade, no início do conto “Vestida de preto”, publicado na obra Contos Novos (1947) diz: “Tanto andam agora preocupados em definir o conto que não sei bem se o que vou contar é conto ou não, sei que é verdade.” (ANDRADE, 1996). O importante, podemos dizer, é que a literatura seja boa na avaliação da crítica. Cíntia Moscovich faz boa literatura, em forma de conto, em Essa coisa brilhante que é a chuva. Considerando que o ser humano é reducionista por natureza, que seja a literatura a expandi-lo na complexidade do seu ato de pensar.
Essa coisa brilhante que é a chuva é o sétimo livro da escritora. Publicado em 2012, reúne contos escritos durante um período especial da vida de Cíntia, quando lutou contra um câncer. Seus pensamentos levaram-na à criação de histórias curtas sobre, principalmente, as relações afetivas do interior das famílias, abordando a instabilidade das coisas que ali residem. Com esse diferencial, as narrativas chegam-nos por uma técnica discursiva capaz de envolver a todos, devido, especialmente, ao fluir da estruturação das frases e as perspicácias dos narradores no uso da linguagem para expressar seus pontos de vista. A escritora possibilita, assim, que o leitor compreenda melhor os textos e com eles interaja. Observando esses cuidados de Cíntia, lembramos falas de intelectuais que defendem a ideia de que a literatura, em nosso país, não é exclusiva das elites ou dos ilustrados, mas é inspiração de todos nós brasileiros que buscamos ler, compreender e escrever.
Cíntia Moscovich é a escritora de Porto Alegre que conquistou, em 2013, o 11º prêmio Portugal Telecom de Literatura e o prêmio Clarice Lispector, instituído pela Fundação Biblioteca Nacional, por Essa coisa brilhante que é a chuva. Além desses, o valor e a importância de sua obra foram reconhecidos em vários outros prêmios literários conquistados, dentre os quais destacamos o primeiro lugar no Concurso de Contos Guimarães Rosa, instituído pelo Departamento de Línguas Ibéricas da Radio France Internationale, de Paris, ao qual concorreu com mais de mil e cem outros escritores de língua portuguesa. Também, o reconhecimento de sua obra deu-se pela posição de patronesse da 62ª Feira do Livro de Porto Alegre (2016). Possui Mestrado em Teoria Literária, é escritora, jornalista, professora, tradutora, consultora literária, revisora e assessora de imprensa.
Estreou como escritora no gênero conto, com a obra individual O reino das cebolas (1996), coedição da Prefeitura Municipal de Porto Alegre e da Editora Mercado Aberto, a qual foi indicada ao Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro. Um dos contos foi traduzido para o inglês e integra uma antologia que reúne escritores judeus de língua portuguesa. Em seguida, lançou a novela Duas iguais – Manual de amores e equívocos assemelhados (1998), pela L&PM, que recebeu o Prêmio Açorianos de Literatura, na modalidade de Narrativa Longa, em 1999. Foi reeditado pela Record. Anotações durante o incêndio (2000) também foi lançado pela L&PM, com apresentação de Moacyr Scliar, tendo como temas predominantes o judaísmo e a condição feminina. Com essa obra, a escritora recebeu, novamente, o Prêmio Açorianos de Literatura. Também foi reeditada pela Record. Pela Record ainda publicou Arquitetura do arco-íris (2004), com o qual recebeu o terceiro lugar em contos no prêmio Jabuti, além da indicação para o Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira e para a primeira edição do Prêmio Bravo! Prime de Cultura. No gênero romance, Cíntia iniciou com Por que sou gorda, mamãe? (2006), também pela editora Record. Em 2007, pela Publifolha, lanço Mais ou menos normal.
A escritora tem participação muito importante no cenário cultural nacional e internacional. Foi diretora do Instituto Estadual do Livro-RS, editora de livros do Zero Hora e colaboradora para outros jornais e revistas do Brasil. Teve participação na Copa da Cultura – Embaixada Brasileira em Berlim -, em 2006, e, em 2007, representou o Brasil na Bienal do Livro de Santiago do Chile. À Flip, Festa Literária Internacional de Paraty, foi convidada para a edição de 2008. Integrou, em 2009, a antologia Os melhores contos brasileiros do século, organizado por Ítalo Moriconi para a Objetiva. Em 2011, fez parte da delegação brasileira no Projeto Rumos, do Itaú Cultural, em Santiago de Compostela, na Espanha. Participou, também, de duas importantes feiras de livros internacionais: em 2012, da Feira Internacional do Livro em Guadalajara e, em 2013, da Feira de Frankfurt. Em todas essas atuações, a escritora se caracteriza pelas motivações humanas que aborda. É uma mulher produzindo cultura, qualificando a literatura, seja ela feita por mulher ou não.
- Razões para ler Essa coisa brilhante que é a chuva, de Cíntia Moscovich.
O essencial do gênero conto restabelece-se em momentos singulares e cheios de significação que encontramos na obra. Essa é a primeira razão para ler Essa coisa brilhante que é a chuva, de Cíntia Moscovich. A linguagem utilizada também é razão importante. Cabe lembrar que a linguagem literária produz (termo usado por Domício Proença Filho). Cíntia usa-a adequadamente e, com ela, constrói relatos de experiências de vidas. Os textos são bem trabalhados, o que leva a pensar que foi tarefa árdua para a autora. Não se pode dizer que os temas abordados possuem transcendências, ou que são daquelas experiências humanas que fazem o leitor perceber que está revelado no texto, mas o leitor encontra elementos por meio dos quais se reconhece, pois os contos cumprem o papel de serem histórias com explosão de energia, com intensidade e tensão, e o diálogo da autora não é restrito. Por isso, comunica-se. Está falando da vida. E isso justifica toda e qualquer produção ficcional. O interessante é que ela desperta no leitor questões como “o que a gente é”? e “qual a ótica que colocamos sobre as coisas”?
Cada conto é uma oportunidade para a alegria e/ou para a tristeza. Só por isso, o que não é pouco, pode-se dizer que é uma arte sincera. Cada personagem tem suas verdades, aparecendo, assim, o relativismo das coisas, mesmo que simplificado, porque tudo se justifica no próprio conto. O que se realiza é o exercício da fantasia. Ao nosso ver, afirma-se bem como leitura escolar, sendo os jovens e os adultos o público leitor que predomina. Inovações na estrutura frasal e uso de neologismos ficam em segundo plano nas narrativas. Com isso, Cíntia viabiliza-se ao leitor existente pelo estilo conhecido e familiar do conto. Há mérito na busca de temas que não ficam confinados na literatura de arquipélago, da qual fala Antonio Candido. São, portanto, temas que contemplam as pessoas e suas experiências existenciais, para além de limites territoriais e geográficos. Nisso reside o encontro com o leitor. E isso interessa porque é preciso contar outras coisas, não reiterar o já dito. Percebemos que, com uma linguagem que não ignora a prática da redação jornalística, a autora procura penetrar mais a fundo no significado das relações humanas, em suas vivências mais amplas, e das coisas do mundo.
A escrita criativa da autora tem a ver com o gosto de leitura dela. Nesse sentido, a intertextualidade revelada nas temáticas feminina, judaica, intimista demonstram as recorrências de sua produção. Se pensarmos bem em nossa trajetória de estudantes e profissionais, é possível que compreendamos um processo curioso que contribuiu para os nossos gostos de leituras e para o nosso acúmulo de conhecimentos: a maneira de fazer com que se conheça algo, é tornando rotineiro o contato. A obra Essa coisa brilhante que é a chuva sugere que assim age a Cíntia Moscovich.
Incrementando a boa literatura feita por escritores gaúchos, Cíntia, que vem se destacando no grupo dos escritores contemporâneos, cria histórias sobre fatos que muitas pessoas conhecem, o que confere verossimilhança às narrativas. A graça maior está, no entanto, nas maneiras diferentes de contar as histórias, maneiras estas construídas, principalmente, pelo discurso, pelo ponto de vista e pela organização dos enredos. “Gatos adoram peixes, mas odeiam molhar as patas”, conto de abertura, é um exemplo dessa questão: trata dos laços familiares, focalizando a relação entre filho e mãe. Aquele vive sob o olhar e os “mimos” desta, que é protetora ao extremo. É bom? Não é bom? Depende do ponto de vista. Nisso reside a surpresa da história narrada, pois não há uma moral sendo estendida aos leitores, mas uma discreta ironia, que advém do fio de humor que amarra o sentido do texto. Há outros fios, quase transparentes, que perpassam as histórias, como, por exemplo, a solidão. Há, ainda, almas leves, infantis, vivendo deslumbramentos, degustando sensações, como se descobre em “Mare nostrum”. Por fim, há, em muitos contos, uma memória de vida a embalar sonho e saudade. Narrações assim atestam a potência da literatura gaúcha da atualidade. Cíntia, nesse sentido, movimenta-se entre o aproveitamento de fatos passados e a incorporação de temas atuais, integrando, assim, a nova geração de escritores.
São as ações que estruturam uma narrativa que mobilizam o leitor. O ato de mobilizar é lembrado, aqui, no sentido de instigar o pensamento sobre a relação do interno da obra com uma determinada exterioridade. Os contos da Cíntia, nesse sentido, contribuem para uma nova relação interno X externo, como afirma Antonio Candido ao se referir ao papel da literatura deste início de século. Sabemos que os princípios unificadores das fases passadas da literatura se dissolveram. Assim, a literatura atual instiga o leitor a buscar elementos que indiquem o aparecimento de uma unificação, ou seja, algo que confere coerência à arte da palavra. Ora, a história da literatura revela que, em todas as épocas, os escritores voltaram-se a um ser ou a um recurso que estava na moda. A que se voltam hoje? Qual interesse justifica colocar a obra em circulação? Pode estar no empenho do escritor na transformação do seu meio, da sociedade? A nosso ver, seguindo a tese de Antonio Candido, essa literatura está sim buscando alguma coisa que assegure o princípio de unificação, mas ainda não foi encontrada. O momento é de procura. Esperamos, de fato, um novo estilo, característico e identitário do século XXI. Vale lembrar que o culto da liberdade da escrita permanece como herança da literatura romântica. É pela consciência do presente, então, que devemos reclamar.
Vale lembrar que, quando estamos lendo literatura, estamos lendo para a vida, na tarefa de entendê-la, pois prepara-nos para o enfrentamento das exterioridades, bem como para uma identificação de si, no processo de autoconstrução.
- Perguntas frequentes …
a.O que o título da obra sugere ao leitor?
O título Essa coisa brilhante que é a chuva é, realmente, bastante expressivo na sua relação com os contos. É poético! Prenuncia narrativas simples e, ao mesmo tempo, densas no aspecto das referências cotidianas das pessoas. Indica que a obra passa pelo tratamento de certas liberdades individuais, que torna a leitura desafiadora ao público interessado.
b. Na obra, encontramos evidências da inscrição de Cíntia Moscovich na literatura feminina brasileira contemporânea?
A escrita de Cíntia Moscovich apresenta aspectos textuais que permitem estabelecer uma relação de proximidade entre a sua escrita e a produção da Clarice Lispector. Sem dúvida, quem lê Clarice vai perceber o diálogo que Cíntia estabelece com essa grande escritora, especialmente no que se refere à condição, aos pensamentos e aos sentimentos femininos. De fato, Cíntia declara que Clarice Lispector, com Laços de família, publicado em 1960, é a maior influência para as suas produções ficcionais.
c. Em que sentido os contos contribuem para a formação do leitor?
Essa coisa brilhante que é a chuva pode ser motivador para quem se interessa por tratamentos inteligentes de temas voltados a elementos peculiares da vida, especialmente os ligados a sentimentos. Quanto aos temas? Vale lembrar a frase de Julio Cortázar (2013, p. 152) : “em literatura não há temas bons ou ruins, há somente temas bem ou mal tratados.”
Essa coisa brilhante que é a chuva, Cíntia Moscovich, é da Editora Record.