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O CENTAURO NO JARDIM, DE MOACYR SCLIAR: MEIO UMA COISA, MEIO OUTRA.

O CENTAURO NO JARDIM, DE MOACYR SCLIAR: MEIO UMA COISA, MEIO OUTRA.

Miguel Rettenmaier

 

“Agora é sem galope. Agora está tudo bem.”
Moacyr Scliar, O centauro no jardim.

 

  1. Pra começar (ou continuar)…

A literatura do Rio grande do Sul, conforme estudos já da década de 80,  superados o ciclo pastoril e agropastoril, apontava para tendências “muito diversas das do tempo do monarca das coxilhas, dos campos abertos, sem fronteiras, sem estradas e cercas de arame farpado (MAROBIN, 1985). O gaúcho idealizado e livre passa a ser muito mais uma peça de culto do que algo que jamais fora, um sujeito histórico concreto. O campo como território de liberdade é mais uma projeção, o “ginete” é termo mais de num vocabulário saudosista associado a um soberano dos pampas que nunca houve fora das representações regionais gaúchas. Aliás, o tempos de economia urbano-industrial não permitem a existência de tal condição heroica. Qualquer idealização só pode passar pela consciência de que essa projeção se dá sobre algo incompatível às novas relações de trabalho, nas novas circunstâncias sociais, renovadas por condicionantes econômicas estabelecidas nos códigos de impessoalidade das cidades. O gaúcho à cavalo não mais existe, mesmo que possam nascer centauros, tornados sujeitos  isolados pelos muros de uma ambiente próprio das cidades: os jardins cercados por um cenário de múltiplas coexistências, advindas de várias precedências, uma das quais, judaica, tem em si características de errância.

2. Razões para ler O centauro no jardim, de Moacyr Scliar.

Segundo Luiz Marobin (1985), Moacyr Scliar merece destaque na literatura sul-rio-grandense “por ter deslocado a temática para o campo restrito de um bairro e ter introduzido, no romance brasileiro, a cosmovisão judaica”. O deslocamento do campo para a cidade é um dos elementos de sua narrativa, trabalhando com um sujeito migrante que, diferentemente do conquistador épico, é um acometido pelas alternâncias históricas que o obrigam a transitar para sobreviver. O centauro no jardim, de 1980, envolve-se justamente nessa linha de trânsito, a qual envolve também uma constante oscilação entre regional e o universal.

O centauro é um elemento  de grande força semântica no Rio Grande do Sul. A imagem do centauro dos pampas reestrutura o sentido de um ser mitológico da antiguidade que reunia, em si, a racionalidade na cabeça, braços e dorso humanos, e as paixões inferiores com corpo e pernas de cavalo. No caso da imagem do gaúcho montado, o centauro traz para a identidade do campeiro a liberdade do livre trânsito pelos pampas associada à compreensão de um guerreiro destemido.  Scliar, por sua vez, reconstitui a dupla face dessas imagens em um sentido muito mais complexo: há nas patas do cavalo sob o busto humano a distorção de um ser que não de identifica com o meio. É um sujeito condenado à constituição física de uma aberração, que subverte a circunstância corporal humana normal.

O estatuto de ser diferenciado, contudo, ganha outro direcionamento na obra de Moacyr Scliar ao focalizar imigração judaica na linha de vida do protagonista, o centauro Guedali,  o qual, como  um judeu, é um integrante de um grupo étnico-religoso  perseguido pelo fluxo opressor da  História, ao mesmo tempo repetindo, no trânsito por vários territórios, a errância inaugural de um povo na busca pela terra prometida. Guedali-centauro é um solitário, o estrangeiro em qualquer parte, e isso se aponta mesmo nos percursos que o protagonista faz pelo o interior do Rio Grande do Sul, pelo Marrocos e por São Paulo, em um circulação que só cessa com a estabilidade material e familiar do protagonista, metamorfoseado à corporalidade  humana. Interessa que esteja em jogo na obra também algo além da associação entre trânsito e identidade. Há também dois outros elementos que poderiam ser discutido: em primeiro lugar a metamorfose do centauro em humano, como metáfora da alternância do capitalismo gaúcho da produção rural à urbana. Em segundo lugar, em uma linha de leitura, mais complexa, há o sentido da própria metáfora na obra  O centauro no jardim já que o discurso do protagonista, que conduz a história, coloca-se em suspeita no fim da narrativa. Sem querer ser um espoliador de leituras, a leitura do romance de Scliar permite a interpretação de que tanto quanto o centauro, o texto de O centauro no jardim tem cabeça, braços e dorso de uma coisa e com corpo e pernas de outra.

3. Perguntas frequentes…

a. A obra O centauro no jardim pode ser classificada como realismo mágico?

Depende. E isso tem a ver o quanto podemos considerar fidedigno o discurso do narrador. Caso o relato do herói seja tomado como uma referencialidade que permite como possível a existência de outra ordem lógica, alijada das imposições da racionalidade e dos limites do real, a coerência interna do texto poderia inscrevê-lo no gênero do realismo mágico. Há ainda duas outras possibilidades. Considerar que a voz narrativa lança mão de uma conduta que não pode ser confiável por algum problema que retire sua noção da realidade dos limites da sensatez. Nesse caso, o texto não integraria o gênero do realismo mágico, já que tudo se trata de uma grande ilusão ou de um grande discurso que não pode ser considerado como “verdade”. Uma outra  possibilidade ainda é deixar em dúvida o relato da personagem, o que poderia inscrever o texto no Fantástico, segundo Todorov. Segundo o teórico, o Fantástico na narrativa ficcional estaria colocando em uma tensão entre o acreditar e o realmente acontecer. Haveria uma hesitação, quase sempre da parte experimentada  do narrador-personagem,  entre a sobrenaturalidade e alguma explicação natural perante os fenômenos. Dessa hesitação participaria o leitor, de alguma forma identificado com o herói.

b. O médico Moacyr Scliar “aparece” nas narrativas do escrito Moacir Scliar?

Essa questão pode ser respondida pelo próprio autor, em entrevista a Bruno Dorigatti (2010). Ao ser perguntado na relação entre medicina e escrita, Scliar afirma que se trata de:

É uma interface fértil, porque são duas atividades que têm em comum o interesse pela condição humana. É claro que, do ponto de vista da medicina, é um interesse mais pragmático, de resolver problemas. No caso da literatura, existe um componente estético, de criação literária, mas, realmente, a experiência médica dá muito para a atividade literária. E esta desenvolve uma sensibilidade que a medicina tende a perder devido ao seu aspecto tecnológico. Acho que esta situação foi muito bem resolvida por um médico escritor famoso, que foi Anton Tchecov, que dizia o seguinte: “A medicina é minha esposa, a literatura, minha amante. Mas eu dou um jeito de satisfazer as duas”. E eu acrescentaria: “E as duas satisfazem também a pessoa em dose dupla”.

Pa te 3. Caminhar pela de memória

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A formação do leitor, alicerçada a todo uma dinâmica metodológica de aprimoramento da competência leitora, em uma construção que envolve estratégia de mediação e de interação entre o sujeito leitor e o texto literário, implica também a mobilização de um acervo de leituras. A constituição desse corpus, obviamente associado a localização identitárias dos sujeitos, à(s) cultura(s) com a(s) qual(is) esses sujeitos se identificam, tem uma função de dupla dimensão quando se observa a tradição literária.

Em primeiro lugar, um corpus canônico sustenta no próprio processo interpretativo da recepção e no processo constitutivo desses textos a evolução histórica da literatura, seus deslocamentos e alternâncias na projeção do tempo. Tratar das fontes é uma necessidade de qualquer investimento pedagógico na formação do leitor e, principalmente, na compreensão de que a literatura acontece em um constante diálogo intertextual, no qual o contemporâneo tem sempre um olhar no passado. Todo ato criativo, toda voz criadora, sempre pode ser, segundo Bakhtin, “a segunda voz do discurso” (1992). Isso quer dizer que todo produto discursivo é de alguma forma resposta ao que lhe antecedeu e, também, proposta ao que virá depois. Não existem enunciados fora dessa relação de diálogo. Toda obra literária, assim como qualquer discurso, se articula em um ato de locução que de certa forma replica propondo tréplicas:

“O próprio locutor, como tal, é em certo grau, um respondente, pois não é o primeiro locutor, que rompe pela primeira vez o eterno silêncio do mundo mudo, e pressupõe não só a existência do sistema da língua que utiliza, mas também a existência dos enunciados anteriores […] aos quais seu próprio enunciado está vinculado por algum tipo de relação” (Bakhtin, 1992, grifo do autor).

Assim, se cada enunciado, cada texto, cada poema, romance, conto, são elos em uma cadeia de outros enunciados, entender o contemporâneo tem, como fundamento, conhecer a tradição.

Em segundo lugar, a literatura como objeto de reflexão, de estudo e de ensino não pode viver sem um olhar preocupado com a tradição, pois isso significa saber quem somos como sociedade e como cultura. No que se refere à escola atual e mesmo à universidade,  associa-se à crise de leitura um voltar-se as costas para a tradição, privar a recepção de qualquer história. É evidente que o contexto de inovações tecnológicas pode ser visto como um fator que afasta a leitura das produções do passado, focalizando o olhar de hoje no “amanhã” das telas digitais. O problema, contudo, é anterior à ubiquidade invasiva dos celulares. Segundo Zilberman (2009):

O novo panorama escolar, vigente até os dias de hoje, caracteriza-se pela ruptura com a história do ensino da literatura, porque se dirige a uma clientela para a qual a tradição representa pouco, já que aquela provém de grupos aos quais não pertence e com os quais não se identifica. A nova clientela precisa ser apresentada à literatura, que lhe aparece de modo diversificado e não modulado, tipificado ou categorizado; ao mesmo tempo, porém, fica privada da tradição, à qual continua sem ter acesso, alargando a clivagem entre os segmentos que chegam à escola e a história dessa instituição.

Ao homenagear quatro autores que cumprem décadas de nascimento ou morte em 2017, a Jornada Nacional de Literatura de Passo Fundo, em sua 16ª edição, pretende trazer a tradição pela voz do contemporâneo. Assim, os atores convidados a tratar de Clarice Lispector, Ariano Suassuna, Moacyr Scliar e Carlos Drummond de Andrade terão suas obra lidas da mesma forma como serão interpretadas também as obras dos homenageados. De alguma forma eles estão, latentes, potenciais,  nos textos de Afonso Romano de Sant’Anna, de Bráulio Tavares, de Cintia Moscovitch e de Nádia Gotlib.

 

Miguel Rettenmaier

Fabiane Verardi Burlamque