Browsed by
Tag: Nádia Gotlib

CLARICE, UMA VIDA QUE SE CONTA, DE NÁDIA BATTELLA GOTLIB: A INTENSIDADE DE CLARICE LIS NO PEITO

CLARICE, UMA VIDA QUE SE CONTA, DE NÁDIA BATTELLA GOTLIB: A INTENSIDADE DE CLARICE LIS NO PEITO

Vinícius Linné

  1. Pra começar (ou continuar)…

É impossível esquecer uma mulher como Clarice. Quando se olha em seus olhos, quando se ouve, ou se lê, suas palavras, alguma coisa dentro da gente obrigatoriamente nasce – flor de lis ou verme de pura loucura. Comigo foi assim. Com você pode ser também. Aliás, desafio você a assistir a última entrevista da escritora (https://www.youtube.com/watch?v=ohHP1l2EVnU), gravada em 1977, sem sentir algum desconforto. Intensidade é o nome disso. Intensidade no cansaço de seus olhos, na rouquidão da sua voz, nas monossílabas que responde, entre a fumaça do cigarro – quando responde. O próprio entrevistador, Júlio Lerner, confessou anos depois, ter ficado atordoado com Clarice.

Tão intensa quanto ela é sua história. Considerada um ícone da Literatura Brasileira, Clarice nasceu na Ucrânia, em 1920. Sua família fugia da perseguição aos Judeus e foi assim que ela veio parar no Brasil. Fugitiva, menina pobre, órfã, jovem advogada, esposa de diplomata, jornalista, mãe divorciada, bruxa (?), Clarice desempenhou inúmeros papéis, nenhum tão intenso quanto o de escritora. Isso porque, ao contrário dos autores preocupados com os fatos, Clarice se deliciava era com a impressão subjetiva desses fatos, com os ecos internos dos acontecimentos.

O que torna a obra desta ucraniana feita brasileira tão universal é porque cada texto, cada frase, cada entrelinha, inclusive, conversa com a gente. Com o que há de humano por dentro da gente. É impossível não perceber como nossa própria felicidade é clandestina. Ou o quanto somos tímidos em nossa ousadia. É impossível não nos reconhecermos no sentimento intenso e primordial que nos domina inteiros: a vontade de pertencer. Clarice não escrevia sobre ela. Escrevia sobre mim. Sobre você. E o olhar de Nádia Battella Gotlib, doutora em Literatura e pesquisadora da autora, captou isso como ninguém nessa biografia.

  1. Razões para ler Clarice, uma vida que se conta, de Nádia Battella Gotlib.

Para entender o arrebatamento deste livro em mim é preciso entender, primeiro, que espaço seu assunto, Clarice Lispector, ocupa na minha vida. Para isso, posso citar o fato de minha esposa ter um ciúme visceral da escritora, falecida em 1977. Assim, por tamanha paixão, é natural que eu já tenha lido todas as biografias lançadas sobre ela, desde as mais íntimas e poéticas, como a da sua amiga Olga Borelli, até as mais jornalísticas, como é o caso daquela escrita recentemente por Benjamim Moser. De qualquer forma, nenhuma foi capaz de traçar o mesmo percurso literário de forma tão intensa quanto esta.

Tenho a impressão de que, mais do que seu perfil de pesquisadora e estudiosa da Literatura, o que contribuiu para a profundidade da análise de Gotlib foi um amor muito consciente pelo tema de seu estudo. Diferentemente de outras biografias, nas quais os fatos e datas tornam-se os pilares do texto, a vida de Clarice se conta quase que sozinha neste livro, como sugere o título. É pelos textos da escritora que Gotlib segue para dar cor ao que, de outra forma, seria apenas uma história morta.

De fato, enquanto os dados dão corpo à obra, as leituras e interpretações do que Clarice escreveu dão alma a ela. Afinal, mais importante do que os acontecimentos, como eu já escrevi acima, é a repercussão que eles causam por dentro. E esta repercussão aparece nas crônicas, nos contos, nas cartas, nos bilhetes e nos romances que dão conta da essência do que era Clarice Lispector e que Gotlib resgata com maestria.

Nesse livro encontra-se o mesmo tom do curta “Clandestina felicidade” (https://www.youtube.com/watch?v=jaxbudiXK54), no qual ficção e realidade se misturam para completar e revelar um pouco mais de Clarice, que, como afirmou Drummond, veio de um mistério e partiu para outro. É no espaço entre esses dois mistérios que Gotlib penetra e nos leva pela mão. Da viagem, voltamos transformados, arrebatados, tão intensos quanto a própria Clarice.

 

 

  1. Perguntas Frequentes…

a. Esta é a mesma escritora que seguidamente aparece no meu Facebook?

Provavelmente não. Três anos antes de sua morte, em carta escrita a uma amiga, Clarice relatou um pesadelo: “sonhei que ia para fora do Brasil e quando voltava ficava sabendo que muita gente tinha escrito coisas e assinava embaixo meu nome. Eu reclamava, dizia que não era eu, e ninguém acreditava, e riam de mim. Aí não aguentei e acordei”.

O sonho de Clarice se revelou, na verdade, uma profecia. Com o avanço da internet cada vez mais citações são atribuídas à autora, a fim de aproveitar sua fama para alavancar curtidas ou para legitimar pensamentos por vezes medíocres, em tudo destoantes da obra de Clarice. Em caso de dúvidas, sempre é melhor checar a origem da frase, de preferência em uma ferramenta confiável, como o Google Books: https://books.google.com.br/. Basta digitar a frase suspeita e em poucos segundos se tem a confirmação (ou a negação) de sua autoria.

b. Clarice era bruxa?

Se você pesquisar um pouco sobre a autora, logo vai descobrir que ela foi presença VIP em um congresso sobre bruxaria em Bogotá. Neste congresso, segundo consta, Clarice leu seu conto “O ovo e a galinha”, que ninguém entendeu, inclusive a própria, e se retirou. Sem dúvida, a intensidade de sua figura e de sua escrita alimentaram este mito, bem como a mística à qual ela inegavelmente se entregava. De toda forma, ao que consta, embora se dedicasse ao judaísmo, frequentasse missas e cartomantes com o mesmo empenho, Clarice não praticou outro ritual obscuro além da própria escrita. Afinal, como se costuma dizer, o que Clarice consegue fazer com as palavras não é só Literatura, é intenso demais para isso: é Bruxaria.

Clarice, uma vida que se conta, de Nádia Battella Gotlib, é da EDUSP.