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AFRODITE – QUADRINHOS ERÓTICOS, DE ALICE RUIZ E PAULO LEMINSKI: UMA LEITURA PROVOCANTE.

AFRODITE – QUADRINHOS ERÓTICOS, DE ALICE RUIZ E PAULO LEMINSKI: UMA LEITURA PROVOCANTE.

 

Silvani Lopes Lima

 

 

1. Pra começar (ou continuar)…

 

Alice Ruiz (1946) e Paulo Leminski (1944 – 1989), ambos paranaenses de Curitiba, foram casados por quase vinte anos e tiveram três filhos. Além de poetas, foram sempre muito ligados ao cenário musical brasileiro, possuindo várias composições e tendo participado de alguns projetos musicais.

Conforme dados recuperados por Murgel (2010), Alice conheceu Paulo em na festa de aniversário de 24 anos deste, em 1968. Ela voltara há pouco de uma estada de dois anos no Rio de Janeiro, onde tomara contato com o Movimento Tropicalista; ele estava imerso em vários projetos artísticos e literários. Ambos sentiram logo uma cumplicidade e afinidade intelectual muito grande. Com Leminski, Ruiz pôde compartilhar do interesse e conhecimento sobre os haikais, sobre o que ela ainda não ouvira falar, e descobre, surpresa, que alguns de seus escritos se identificavam com aquele tipo poesia.

Depois de casados, por algum tempo, Paulo trabalha como professor, jornalista/publicitário e escritor e Alice dedica-se ao cuidado da casa e dos filhos. Porém, logo ela se dá conta de que precisa começar a produzir, colocar em prática suas ideias feministas e emancipatórias, dando exemplo à filha que criava. Começa então a escrever artigos para revistas e jornais locais. Logo em seguida, no início dos anos 70, o casal se torna redator de uma revista e nos anos subsequentes trabalham em revistas e agências de publicidade da capital paranaense.

Em 1978, Alice passa a escrever para as revistas da editora-gráfica Grafipar e Paulo contribui com alguns escritos. Vaz (2001, p. 153) lembra que “a gráfica editava uma profusão de pequenas publicações, sendo que uma delas, chamada Peteca, permitia contos eróticos e horóscopos picantes”. Na redação da Grafipar, Alice passou a escrever ensaios e histórias em quadrinhos. São desse período as histórias em quadrinhos (HQs) reunidas na obra Afrodite: quadrinhos eróticos, que além de conter roteiros primorosos do casal de poetas curitibanos, trazem ilustrações de alguns dos maiores quadrinistas do Brasil, reunindo nomes como Júlio Shimamoto, Claudio Seto e Flávio Colin.

 

 

  1. Razões para ler Afrodite: quadrinhos eróticos, de Alice Ruiz e Paulo Leminski.

 

Uma chave de leitura indispensável para esta obra está nas informações contidas em seu prefácio. Sem um conhecimento mais aprofundado sobre a obra e a trajetória intelectual e artística dos autores, não é possível alcançar a origem dos textos reunidos na obra e nem compreender o seu contexto de produção. Daí a importância de partirmos dessa chave de leitura que a autora Alice Ruiz nos dá.

Afrodite: quadrinhos eróticos é a reunião de uma seleção de textos em formato de HQs produzidos na década de 1970, com roteiros de Alice Ruiz e Paulo Leminski e ilustrações de vários quadrinistas que produziam para a editora-gráfica Grafipar, em Curitiba, no estado do Paraná. Ruiz (2015, p. 10) afirma que, na época, à exceção de uma revista que falava “mais seriamente de temas da época”, as demais revistas da editora todas tinham o sexo como “tempero principal”, e que atrelar as produções a esse tema era uma estratégia de sobrevivência do grupo. Da revista Eros, uma produção da editora voltada para o universo masculino, surge o anagrama Rose, nome atribuído a uma nova proposta de revista que se volta para o público feminino. Nesta, as redatoras, entre elas Ruiz, ousaram mostrar, pioneiramente, a nudez masculina, ainda que com alguma censura. Entre os variados temas da revista, estava a astrologia, do qual deriva outra produção específica, a Horóscopo de Rose. Porém como as HQs eram o ponto alto da produção da Grafipar, logo Ruiz se vê seduzida por aquele universo e, a partir de um insight provocado por suas leituras de Dalton Trevisan, começa a criar roteiros para as HQs.  Para a Horóscopo de Rose, produz uma série de roteiros em torno da mitologia grega, enfocando os deuses relacionados com os planetas regentes. Nessa produção, usa o pseudônimo de Urânia e conta com a contribuição de Leminski em alguns números, que adota pseudônimos como Professor Hamurabi, entre outros. Além desta revista, o casal Ruiz e Leminski produz ativamente para outras revistas da Grafipar, em sua grande maioria voltadas para o público feminino, com abordagem de “temas do momento, ou os que [lhes] pareciam mais urgentes no processo de conscientização da mulher” (RUIZ, 2015, p. 12).

De posse das informações elencadas, acessamos mais facilmente a obra em análise, a qual reúne vinte e três histórias, dezesseis delas roteirizadas por Alice Ruiz e as demais com roteiros de Paulo Leminski. Os textos foram retirados de cinco diferentes revistas da Grafipar: Rose, Maria Erótica, Aventuras em quadrinhos, Horóscopo de Rose e Neuros, desta incluindo duas que foram republicadas na “Coleção Erótica Gigante”.

O que as HQs reunidas na obra têm em comum? Quase na sua totalidade, elas apresentam roteiros que abordam de forma mais ou menos direta o sexo – por meio do desejo sexual, do amor sensual ou dos fracassos amorosos/sexuais –, além de apresentar ilustrações bastantes sexualizadas, com nus humanos e reprodução de cenas mais ou menos explícitas de relações sexuais, por vezes acompanhadas de interjeições que remetem ao ato sexual em si. Também é recorrente a alusão às temáticas feministas nas histórias, que, como mencionado, era o enfoque de muitas das revistas em questão. Isso é perceptível, por exemplo, nos próprios títulos de algumas delas, tais como “Eu sei o que ela está precisando”, “Os homens me chamam de Vênus” e “Cobra com mulher”. No primeiro título, a expressão utilizada tornou-se cristalizada no universo masculino machista, entre homens que julgam saber “o que as mulheres precisam”; ou a segunda expressão que alude às diferenças antitéticas entre o comportamento masculino e o feminino, tais como os homens serem de marte (deus da guerra) e as mulheres, de vênus (deusa do amor); ou ainda na expressão “ser cobra”, mais uma vez remetendo ao homem que se julga especialista no “assunto mulher”.

Avançando em uma análise rápida dos títulos das histórias, há outros bastantes sugestivos, tais como “Pecadinho”, “No inferno com você” ou “Sinal verde para o prazer”, que provocam o leitor para saber o que há por trás dessas legendas. Há também aqueles que evidenciam de maneira bem explícita o intertexto com outra obra, como “Um índio virá de uma estrela”, título de uma canção do álbum Bicho, de Caetano Veloso, de 1977.

Com profusas possibilidades interpretativas, Afrodite: quadrinhos eróticos reúne textos que exploram elementos eróticos com sutileza, leveza e profundidade crítica, sem descambar em momento algum para a vulgaridade, tornando-se uma leitura extremamente prazerosa. Nas HQs retiradas de Horóscopo de Rose e Maria Erótica, adentramos, encantados, o mundo dos deuses gregos, de suas vaidades e seus amores. Nos textos de Rose e Neuros, notamos como, de uma maneira sutil e/ou irônica, a pretensão masculina é descontruída. Em “Um índio virá de uma estrela”, de Aventuras em quadrinhos, vemos o sarcasmo em relação à fracassada civilização humana. Enfim, sem nos alongarmos em análises mais aprofundadas, pois não é nossa intenção roubar o prazer da descoberta do leitor, fica o convite para essa provocante, ousada e surpreendente leitura.

3.       Perguntas frequentes…

 

 

a. O que o casal Ruiz e Leminski representam no movimento de contracultura no Brasil?

 Antes de pensar o que o casal de poetas curitibanos representa no movimento de contracultura no Brasil, é preciso entender o que foi esse movimento. Em linhas gerais, tratou-se de um movimento de caráter internacional, que surge nos anos 60 e 70 encabeçado por jovens de diversas partes do mundo que, aproveitando um momento de grandes transformações sociais, principalmente após os acontecimentos de maio de 68 na França, decidem se posicionar criticamente (opondo-se) ao consumo desenfreado promovido pela sociedade capitalista, ao apego material, à moral pregada pela sociedade da época, aos padrões estéticos vigentes, entre outras questões. Os jovens que integraram esse movimento externavam suas críticas e contestavam os valores daquela sociedade através do modo de vestir – com roupas e penteados fora do “padrão” –, do consumo de drogas, do propagação e consumo do estilo musical Rock and roll, de uma postura underground, por meio do que afirmavam uma atitude irreverente. A arte e a música, nesse contexto, permitiam expressar suas posições e suas alternativas de vida.

No Brasil, essa onda contestatória se fortalece através do grupo chamado de “Tropicália”, que contava com artistas como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa e Tom Zé. Esse movimento musical inovou bastante a música popular brasileira, trazendo em suas letras versos que rompiam com o tipo de música feito até então. Em suas roupas e estilos percebia-se a influência do estilo hippie que contestava os padrões elitistas da sociedade. Mais tarde, essas inovações inspiraram outros artistas brasileiros, como Raul Seixas, Legião Urbana, Paralamas do Sucesso, Titãs, etc.

Nesse contexto, o casal Alice Ruiz e Paulo Leminski, amigos pessoais dos tropicalistas e de outros artistas do cenário nacional (inclusive como letristas de canções famosas), demonstraram logo uma atitude e uma produção artística que se identificava com o movimento de Contracultura, já que suas letras musicais e sua poesia evidenciavam uma maneira de criar fora dos padrões dominantes. Leminski possuía uma personalidade inquieta e multifacetada, atuando como poeta, letrista de música, romancista, ensaísta, roteirista, etc., colaborou em diversos segmentos da vida intelectual e artística de Curitiba e do país. Com uma literatura experimental, além do romance Catatau (1975), inspirado na literatura modernista de vanguarda, esteve entre os poucos poetas nacionais que conseguiram traduzir para a língua portuguesa a força dos haicais japoneses, poemas curtos (geralmente compostos por apenas três versos). Leminski, além de pioneiro, é um dos mais bem-sucedidos criadores de haicais no Brasil, juntamente com a poeta Alice Ruiz. Alice, da mesma maneira, faz contato com os tropicalistas desde o início do movimento e mais tarde, ao conhecer Paulo, divide com ele a efervescência intelectual da década de 70 e 80. A escritora também colabora com diversos suplementos literários a partir da década de 70, com uma literatura contestadora e muito engajada com a causa feminista. Ruiz faz parte de uma geração de artistas brasileiros que viveu a contracultura e construiu a sua obra em meio a grupos ligados a esse movimento, como o modernismo, o concretismo, a Tropicália, entre outros. Sua obra já foi considerada “insubmissa e inventiva, lírica e imprevista, fluente e musical, irônica, bem-humorada, brutalmente sensível”, estando “entre as vozes mais originais da poesia brasileira contemporânea”. (POETA, 2015)

 

b. Da década de 70 do século XX à atualidade, houve uma mudança de paradigmas na sociedade brasileira no que se refere ao tema do feminismo?

Para respondermos a esta questão é preciso retomarmos, rapidamente, o surgimento e a história do movimento feminista. Estudiosos do movimento falam em dois feminismos: um primeiro emancipacionista, que surge no século XIX, e um segundo, contemporâneo, que surge em meados do século XX. O feminismo emancipacionista tem na Inglaterra seu centro irradiador e gira em torno do direito de igualdade jurídica das mulheres em relação aos homens. Destaca-se aí o pensador inglês Stuart Mill que apresenta as primeiras teses em favor dos direitos das mulheres, reivindicando abolição da desigualdade no núcleo familiar, a igualdade de acesso aos postos de trabalho e de acesso aos níveis instrucionais para elas. O feminismo contemporâneo assenta-se no movimento surgido em meados da década de 60 do século XX e requer o direito à “libertação” da mulher, o que implica superar a questão da igualdade e ganhar o respeito à alteridade, ou seja, a mulher deve ser respeitada na sua singularidade quando atinge a igualdade jurídica, pois se verifica que mesmo nessas condições ela continua em situação de opressão. É nesse momento que algumas mulheres se projetam como líderes feministas, caso de Simone de Beauvoir, que tem inspirado e fundamentado a luta feminista até hoje. No Brasil, as lutas feministas tem alguns episódios mais notórias a partir do início do século XX, mas é apenas em 1946 que o direito ao voto e à candidatura de mulher à política, por exemplo, são garantidos na constituição. Nos anos 60 e 70, mais alguns avanços acontecem, entre os quais estão a criação da Fundação das Mulheres do Brasil, a aprovação da lei do divórcio e a criação do Movimento Feminino Pela Anistia no ano de 1975, considerado o Ano Internacional da Mulher, com debates sobre a condição feminina. Nos anos 80, foi criado o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, que passaria à Secretaria de Estado dos Direitos da Mulher e, mais tarde, a ter status ministerial como Secretaria de Política para as Mulheres. Todavia, é importante ressaltar que, a partir da década de 60, o movimento incorporou questões ainda não resolvidas em pleno século XXI, as quais necessitam avanços para alcançar condições plenas, entre elas o acesso a métodos contraceptivos, a saúde preventiva da mulher, a igualdade entre homens e mulheres, a proteção à mulher contra a violência doméstica, a equiparação salarial, o apoio em casos de assédio, entre tantos outros temas ligados à condição da mulher. Vemos que hoje, embora a mulher tenha condições de igualdade jurídica em relação a direitos políticos, educacionais, trabalhistas, etc., ainda não alcançou o tão almejado respeito no que se refere à sua alteridade.

c. Diante da constatação de que o sexo ainda é tema tabu, cabe a questão: Por que, em uma sociedade que se julga pós-moderna, continuamos temendo a revolução sexual?

A resposta a esta questão tem relação com a questão anterior, ou seja, verificamos que o machismo continua extremante enraizado em nossa cultura e isso faz com que não somente homens como mulheres primeiro não acreditem em condições plenas de igualdade (inclusive no respeito às diferenças) de gênero, assim como também temem que as mulheres possam vir a subjugar os homens, algo que extremamente perigosos para a nossa atual organização social. Daí que existam os mais diversos mitos quanto ao feminismo e, em especial em relação à questão da sexualidade, tais como de que homossexuais sofram de uma doença que deva ser curada, que a convivência com homossexuais, bissexuais, transexuais ou com pessoas que sejam libertas sexualmente seja pernicioso. Nesse sentido, a obra de Ruiz e Leminski, por apresentar conteúdo erótico, possui um grande potencial para desfazer preconceitos, ao trabalhar com cenas de nudez e de sexo de forma muito natural e apresentar roteiros que vão descontruindo ideias cristalizadas sobre o comportamento masculino e feminino em nossa sociedade.

Afrodite: quadrinhos eróticos, de Alice Ruiz e Paulo Leminski, é da Editora Veneta.

 

Nossos coordenadores: a beleza múltipla.

Nossos coordenadores: a beleza múltipla.

                        “…é sempre por rizoma que o desejo se move e produz” 
                                                                                                    Deleuze & Guattari

 

Um dos aspectos que caracteriza a literatura contemporânea é a multiplicidade, seja pela diversidade diversidades de suportes e plataformas, seja pela maneira como códigos desdobrar-se rizomaticamente, em um processo de fuga criadora apartado de tutelas e de padrões. Se até os anos 80 havia um inimigo comum, a repressão, “os burgueses ou coronéis”, (CANEIRO, 2005) naquele momento vestindo o chumbo do Estado burocrático-autoritário, a pós-utopia perdia um caminho preciso de trânsito e um rosto definido de inimigo. A indústria cultural não era a alternativa da alienação, contra a qual se devia lutar, era uma portadora der múltiplas tendências em síntese dinâmica. Dela, surgiam as primeiras convergências do que viria a se tornar a arte algo sincrético, hibrido, contaminado por arranjos estéticos, por instalações verbais cruzadas por imagem e mesmo por sons, por uma literatura aberta e prospectiva, sem pudor no uso de suportes, sem receio de recuar ao cânone, sem desonra por curvar-se a fontes, quaisquer que fossem, das canônicas às desautorizadas. O escritor não apenas escreve, ele pode roteirizar para TV. O escritor faz poesia e letra de música popular, faz rock, joga futebol. Mesmo que perca a biografia de um resistente assumido e alinhado, mesmo que agora adotando às vezes a pacata vida acadêmica, os escritores e seus leitores são sujeitos em formação, e isso coloca a todos em um novo princípio de vida: o da realidade presente não engatilhada em função das utopias, mas comprimida para disparar ao futuro, que é sempre uma incógnita. E isso não deixa de ser uma forma de resistência, a que espera o que vem para reagir de alguma forma, sem modelos, sem padrões determinados, sem cartilhas.
A vos do poeta, assim e por exemplo, não se desaponta perante a semiose dos quadrinhos. Alice Ruiz, nova coordenadora do palco de debates da Jornada, que o diga e o mostre. Os quadrinhos eróticos de Afrodite, de Alice Ruiz e Paulo Leminski comprovam que as musas podem ser desenhadas e desnudadas pela semântica da liberdade (e até de alguma obscenidade). Na linha de uma perspectiva aberta, o jornalista, psicólogo, professor e provocador literário Felipe Pena é também apresentado como um dos novos coordenadores da Jornada, pelo livro O marido perfeito mora ao lado. Conhecido por engendrar o conceito de “subzero” nos estudos literários, denominando os escritores adorados pelos leitores, mas congelados pela crítica (o que desafia frontalmente a produção literária mais sofisticada e as instâncias críticas ligadas a elas), Pena narra os fatos do desejo hiante e ao mesmo tempo esboça as dinâmicas da sociedade contemporânea, nas quais as relações humanas desautorizam os limites e os códigos de conduta. Augusto Massi, poeta, crítico e jornalista, é apresentado por seu livro Negativo. Estética lírica de grande sensibilidade, a poesia de Massi faz entre o preto o branco um universo de interrogações regida pela contenção verbal, em textos curtos, mas profundos e agudos. Esses são os novos coordenadores das Jornada.
Nos posts seguir algumas leituras “incomp etas” das obras de Alice Ruiz, Felipe Pena e Augusto Massi.