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MENSUR, DE RAFAEL COUTINHO: SOBRE AS CICATRIZES

MENSUR, DE RAFAEL COUTINHO: SOBRE AS CICATRIZES

Vagner Ebert 

  1. Pra começar (ou continuar)…

Rafael Coutinho, filho de Laerte Coutinho, é quadrinista e ilustrador. Nasceu em São Paulo na década de 1980, é autor da série Beijo Adolescente e trabalhou com Daniel Galera na obra Cachalote. Nos sete anos seguintes ao lançamento de Cachalote, Rafael trabalhou, entre outros projetos e atividades, em Mensur, sua primeira história em quadrinhos longa, com 208 páginas.

Mensur é uma luta de espadas que teve origem nas fraternidades das universidades alemãs do século XV. Nessa luta praticada exclusivamente por homens, o objetivo é resistir enquanto um oponente golpeia o rosto do outro, ambos parados em pé e movimentando apenas as espadas acima da cabeça. Mas não é apenas sobre essa luta de espadas que a obra de Rafael trata. Pelo contrário, vai muito além de um simples ritual de resistência, força, masculinidade, honra e moral, revelando também as cicatrizes da sociedade e da vida contemporânea. Mensur é uma narrativa intensa, uma HQ instigante e um convite a desvendar o seu protagonista e, por conseguinte, a nossa própria vida em meio as diferentes manifestações de violência que se escondem nas sombras da civilização humana.

 

Sendo a arte do desenho parte identitária tanto de Rafael Coutinho quanto de seu pai, Laerte, desafio você, leitor(a), a testar suas habilidades artísticas a seguir. Faça uma pausa nesta leitura para tomar posse de um lápis e de um pedaço qualquer de papel, pois o desafio que lhe proponho é um desenho falado. Considerando que você não tem em sua mente nenhuma imagem de quem é Rafael Coutinho, darei a seguir algumas informações sobre a fisionomia do autor, às quais peço que traduza para o papel. Contudo, caso já o conheça, lhe convido a seguir também minhas palavras e assim inscrever no papel a fusão entre a sua lembrança e a minha descrição. Pronto(a)? Vamos lá!

Comece desenhando um rosto oval. Lembre-se, não é um círculo, é preciso desenhar um rosto um pouco mais alongado. Desenhe olhos, nariz, orelhas e boca – essa com um leve sorriso – a seu modo, não pretendemos ser tão minuciosos, não é mesmo? Inclua agora sobrancelhas grossas, uma barba cheia e cabelos escuros levemente ondulados e penteados para trás. E pronto! Agora, amigo(a) leitor(a), acesse o site da Companhia das Letras e, na página dedicada aos autores, encontre Rafael Coutinho, compare seu desenho com a foto do autor e reflita: o quão parecido está seu desenho? Terão sido suficientes as informações que forneci para a sua ilustração? Assim como nenhum desenho aqui proposto será igual ao de outro leitor que aceitou esse desafio, as interpretações possíveis a partir da leitura de uma HQ são igualmente múltiplas, por isso lhe convido a conhecer Mensur enquanto uma luta de espadas e um conflito de inquietações.

  1. Razões para ler Mensur, de Rafael Coutinho.

 

Há quem acredite que existe em cada indivíduo um antagonismo entre o bem e o mal, uma luta entre a luz e a sombra. Ninguém é totalmente bom e ninguém é mal por inteiro. Nas ilustrações em preto e branco das páginas de Mensur Rafael Coutinho apresenta a narrativa de um personagem com seus conflitos também em preto e branco, uma busca por algum lugar, ou, como a própria obra indica em sua contracapa, a busca por “[…] algum tipo de paz” que condiz com os princípios de honra e moral do personagem. Nesse contexto, Gringo, protagonista da HQ, um mensuren – como são chamados os praticantes do Mensur – vaga por diferentes cidades brasileiras a procura de empregos temporários, de algum sentido para a sua jornada e de respostas para as suas angústias, convivendo com as lembranças do seu passado, os conflitos do presente e as incertezas de um futuro prejudicado por escolhas erradas.

 

O preto e o branco das páginas de Mensur também contrastam com as realidades da vida, com a violência, a agressividade, a intolerância, a individualidade, o egoísmo, jogando luz sobre as cicatrizes que a sociedade busca manter ocultas pelas sombras do medo e da mentira, cicatrizes que fingimos não ver. Mensur não é apenas sobre lutas com espadas, é também sobre os duelos que existem em meio a diálogos e conflitos de interesses, lutas que Gringo trava com outros indivíduos enquanto um mensuren e consigo mesmo na busca por respostas.

Não obstante aos conflitos pessoais de Gringo, há na HQ também um mistério acerca de um crime. O assassinato de uma personagem, aparentemente uma trama em segundo plano, cruza o caminho de Gringo e instiga o leitor a arriscar seus próprios traços e teorias na busca por entender o que aconteceu e sobre qual terá sido a participação de Gringo nessa história. Assim, em Mensur, Rafael Coutinho insere uma tradicional luta de espadas alemã em um Brasil contemporâneo e, por meio dos movimentos das espadas, consegue contrapor objetivos e realidades diferentes, questionar comportamentos e refletir sobre a agressividade que o ser humano esconde dentro de si, construindo a narrativa da HQ através dos golpes produzidos com a caneta e o pincel e cuja tinta se revela como o sangue negro de uma sociedade que precisa rever seus conceitos.

3. Perguntas frequentes…

a. Na obra surgem duas práticas de Mensur com uma sutil diferença: o fio das espadas. Enquanto que na luta tradicional são usadas lâminas afiadas que abrem a face dos duelistas, em uma prática mais moderna e menos dolorosa são utilizadas espadas não afiadas cujos golpes ferem, mas não cortam. Considerando que a prática do Mensur surgiu, no século XV, enquanto uma maneira de fortalecer e preservar a honra, a presença de uma luta sem ferimentos poderia ser compreendida como uma crítica à desvalorização da moral e da honra?

A prática do Mensur sem ferimentos possibilita uma leitura reflexiva enquanto uma crítica à desvalorização da moral e da honra, mas a própria sociedade retratada por Rafael Coutinho, a qual fecha os olhos para muitos problemas capazes de ferir e assustar mais do que as espadas dos mensurens da narrativa.

b. Mensur é para Gringo um vício. Em meio as diferentes mazelas da sociedade contemporânea, é possível ler Mensur enquanto uma crítica social aos mais variados vícios cujas cicatrizes estão à mostra nas faces da vida cotidiana?

Ler é um ato de diálogo entre as linhas e entrelinhas do texto e os saberes prévios do leitor. Assim, é possível ler Mensur com variadas interpretações. Parece haver uma forte crítica aos problemas sociais contemporâneos, não só aos vícios que mesmo ferindo e matando aprisionam pessoas em formas de prazer muitas vezes mortais, mas também as diferentes manifestações de preconceito que machucam, cortam, matam e deixam cicatrizes em indivíduos de todas as cores, raças e religiões.

 

c. Sobre a narrativa proposta por Rafael em Mensur, o que se pode acreditar que aconteceu com a personagem assassinada? Qual a verdadeira história contada nas entrelinhas da HQ sobre esse fato?

A pergunta que se esconde atrás da morte da personagem é: terá sido Gringo o responsável por sua morte? Ou será que o protagonista estava na hora e lugar errados? De acordo com a própria narrativa, Gringo tem pesadelos com a personagem assassinada, mas, apesar de se questionar se foi o culpado, o mensuren afirma saber que a morte não foi de sua responsabilidade. O que a história desse assassinato parece revelar é, na verdade e acima da relevância de quem foi o responsável pelo crime, outra das cicatrizes da sociedade: a homofobia.

Mensur, de Rafael Coutinho, é da Companhia das Letras.

 

 

P rte 2 A leitura além dos limites: literatura e imagem.

P rte 2 A leitura além dos limites: literatura e imagem.

“… viver significa ver. A visão é limitada por uma dupla fronteira: a luz intensa, que cega, e a escuridão total.”

Milan Kundera

 

A absoluta presença das mídias de imagem na sociedade atual obriga a uma associação direta e imediata entre leitura e percepção, e isso implica colocar sob uma pluralidade conceitual o que se entende por ler e por constituir sentidos. Para Robert Darnton (2011), “a leitura não é simplesmente uma habilidade, mas uma maneira de estabelecer significado”, numa ordem compreensiva que, na cultura contemporânea, atinge a multiplicidade de plataformas da mesma forma como se irradia para uma diversidade de códigos em distintas matrizes interpretativas. O não-verbal contamina-se com o verbal produzindo novos gêneros discursivos, a imagem se verbaliza e se movimentam, o real se torna um confronto incessante de representação, as quais dialogam entre si, refletem, deformam, reformam e reparam nossa percepção da vida: conforme Santaella (2012) são os signos, a linguagem “a única e magna forma de síntese que dispomos para a ligação entre o exterior e o interior, entre o mundo lá fora e o que se passa dentro deste mundo interior”.  Em se tratando das signos em imagens, Johnson (2001) ainda observa que somos fixados na imagem “não porque tenhamos perdido a fé na realidade, mas porque as imagens têm agora enorme impacto sobre a realidade”.

A noção de imagem, de qualquer forma, tem relação com nossos processos mentais. Segundo Costa (2009), a variabilidade de sentidos para a palavra imagem envolve a percepção visual do mundo que nos cerca e a imaginação, como síntese perceptiva produzida em nossa mente, sendo, portanto, subjetiva, criada por nossa “sensibilidade e ponto de vista” (Costa, 2009). Essa imagem, como base dos processos mentais, abstratos e cognitivos, permitiria a reflexão, a memória, as avaliações e, também, em um âmbito intersubjetivo, o compartilhamento dos objetos internos. Esse intercâmbio de visões de mundo, por meio da linguagem e dos signos, é o fundamento da cultura, associada às capacidades de expressão e de leitura, indispensáveis à comunicação. Desse aspecto surge uma terceira acepção à imagem: a que diz respeito ao que é produzido pelo ser humano para expressar-se. A expressão da subjetividade pelas linguagens gráficas e visuais permite experiências coletivas. Assim, as imagens desenham, focalizam, compreendem e organizam o mundo. Mas isso não é o bastante, as imagens servem para imaginar outros mundos e outras formas de ser no mundo. As imagens imaginam…

Se tudo isso torna a compreensão da imagem algo complexo, o universo da contemporaneidade potencializa a problemática ao atirar em doses industrias saraivadas de signos por toda a parte, desde a mais singela placa informativa ao mais possante aplicativo para mobile. Na realidade, as imagens e os demais códigos comunicativos passam por convergências e sincretismos. De um lado, códigos de tipos distintos passam a ocupar territórios e plataformas comuns ao serem digitalizados em ambientes saturados de signos em fluxo, em uma era chamada de pós-imagética ou hipermidiática, de natureza também interativa, móvel e ubíqua; por outro lado, pela proximidade de tantas referências, a força sincrética das manifestações colabora para a compreensão uma nova ordem de processos mentais, interpretativos e expressivos. A linguagem híbrida, que se apropriava no mínimo de dois sistemas comunicacionais (os enunciados visuais e os enunciados verbais) nos investimentos discursivos do marketing e da publicidade, o que lhes garantia alto poder de persuasão, agora é uma referência expressiva acessível a qualquer usuário da rede. Isso torna a expressão e a arte livres de coerções, já que quase tudo, em termos de expressão, é possível. Assim, as fontes não mais se limitam às delimitações estéticas, tipológicas, ambientais. Uma nova ecologia de códigos intercambiantes contamina os espaços íntimos ou particulares, sem definição precisa entre eles. Essa mesma indefinição torna impossível qualquer fronteira que impossibilite o contato intercultural, interlinguístico. Para  Canevacci (2013), como um  “vírus,  o sincretismo é um contágio, é “ubíquo, pidgin”, como se fosse uma forma de comunicação espontaneamente criada a partir da mistura de duas ou mais línguas, de duas ou mais linguagens.  Na sociedade “glocal”, que mistura local e global, a imagem contaminada, sem assepsias, é língua com grande eficiência de sentido.

Escrevendo e desenhado, em mesa de bar Pedro Gabriel tornou-se um fenômeno nas redes sociais ao postar suas produções, poesias escritas/desenhadas à mão em guardanapos de papel, as quais tratam de amor, de ausência, de paixão, de solidão. Sem se preocupar com a simplicidade de alguns trocadilhos e de algumas outras figuras, o autor mistura a simplicidade da linguagem à singularidade do “arabesco” de alguns ou da maioria de seus traços (que lembram até pichações invasoras). A simplicidade também é um termo pouco alinhado à obra de Rafael Coutinho, principalmente em se tratando de linha narrativa. No romance gráfico Mensur, Coutinho trabalha com a linha de personagens romanescas nômades e degradadas, em um conflito que mistura linhas de tempo à memória traumatizada do herói. Gringo é um adepto de uma luta de espadas surgida há séculos na Europa. Seu rosto ostenta cicatrizes, sua alma também. W, romance de Roger Melo, um dos maiores ilustradores do mundo, sua primeira produção para adultos, alia o tema da cartografia, como representação gráfica, aos segredos das rotas nas grandes navegações. Um dos mapas é tão secreto que se encontra tatuado nas costas do protagonista. O maior segredo da obra, contudo, se encontra na desorientação que reserva à recepção.

O que se tem, nesse conjunto e obras é quase uma advertência sobre o traço de complexidade que é essência da imagem artística contemporânea. A ilustração joga com sentidos que exigem da recepção um olhar atento e sensível ao que provoca esse redesenho do mundo. Levando as representações mentais ao um jogo intenso de compartilhamento, novos sentidos surgem, novas maneiras de compor o humano, o ser, o ler.

 

Miguel Rettenmaier

Fabiane Verardi Burlamaque