P rte 2 A leitura além dos limites: literatura e imagem.

P rte 2 A leitura além dos limites: literatura e imagem.

“… viver significa ver. A visão é limitada por uma dupla fronteira: a luz intensa, que cega, e a escuridão total.”

Milan Kundera

 

A absoluta presença das mídias de imagem na sociedade atual obriga a uma associação direta e imediata entre leitura e percepção, e isso implica colocar sob uma pluralidade conceitual o que se entende por ler e por constituir sentidos. Para Robert Darnton (2011), “a leitura não é simplesmente uma habilidade, mas uma maneira de estabelecer significado”, numa ordem compreensiva que, na cultura contemporânea, atinge a multiplicidade de plataformas da mesma forma como se irradia para uma diversidade de códigos em distintas matrizes interpretativas. O não-verbal contamina-se com o verbal produzindo novos gêneros discursivos, a imagem se verbaliza e se movimentam, o real se torna um confronto incessante de representação, as quais dialogam entre si, refletem, deformam, reformam e reparam nossa percepção da vida: conforme Santaella (2012) são os signos, a linguagem “a única e magna forma de síntese que dispomos para a ligação entre o exterior e o interior, entre o mundo lá fora e o que se passa dentro deste mundo interior”.  Em se tratando das signos em imagens, Johnson (2001) ainda observa que somos fixados na imagem “não porque tenhamos perdido a fé na realidade, mas porque as imagens têm agora enorme impacto sobre a realidade”.

A noção de imagem, de qualquer forma, tem relação com nossos processos mentais. Segundo Costa (2009), a variabilidade de sentidos para a palavra imagem envolve a percepção visual do mundo que nos cerca e a imaginação, como síntese perceptiva produzida em nossa mente, sendo, portanto, subjetiva, criada por nossa “sensibilidade e ponto de vista” (Costa, 2009). Essa imagem, como base dos processos mentais, abstratos e cognitivos, permitiria a reflexão, a memória, as avaliações e, também, em um âmbito intersubjetivo, o compartilhamento dos objetos internos. Esse intercâmbio de visões de mundo, por meio da linguagem e dos signos, é o fundamento da cultura, associada às capacidades de expressão e de leitura, indispensáveis à comunicação. Desse aspecto surge uma terceira acepção à imagem: a que diz respeito ao que é produzido pelo ser humano para expressar-se. A expressão da subjetividade pelas linguagens gráficas e visuais permite experiências coletivas. Assim, as imagens desenham, focalizam, compreendem e organizam o mundo. Mas isso não é o bastante, as imagens servem para imaginar outros mundos e outras formas de ser no mundo. As imagens imaginam…

Se tudo isso torna a compreensão da imagem algo complexo, o universo da contemporaneidade potencializa a problemática ao atirar em doses industrias saraivadas de signos por toda a parte, desde a mais singela placa informativa ao mais possante aplicativo para mobile. Na realidade, as imagens e os demais códigos comunicativos passam por convergências e sincretismos. De um lado, códigos de tipos distintos passam a ocupar territórios e plataformas comuns ao serem digitalizados em ambientes saturados de signos em fluxo, em uma era chamada de pós-imagética ou hipermidiática, de natureza também interativa, móvel e ubíqua; por outro lado, pela proximidade de tantas referências, a força sincrética das manifestações colabora para a compreensão uma nova ordem de processos mentais, interpretativos e expressivos. A linguagem híbrida, que se apropriava no mínimo de dois sistemas comunicacionais (os enunciados visuais e os enunciados verbais) nos investimentos discursivos do marketing e da publicidade, o que lhes garantia alto poder de persuasão, agora é uma referência expressiva acessível a qualquer usuário da rede. Isso torna a expressão e a arte livres de coerções, já que quase tudo, em termos de expressão, é possível. Assim, as fontes não mais se limitam às delimitações estéticas, tipológicas, ambientais. Uma nova ecologia de códigos intercambiantes contamina os espaços íntimos ou particulares, sem definição precisa entre eles. Essa mesma indefinição torna impossível qualquer fronteira que impossibilite o contato intercultural, interlinguístico. Para  Canevacci (2013), como um  “vírus,  o sincretismo é um contágio, é “ubíquo, pidgin”, como se fosse uma forma de comunicação espontaneamente criada a partir da mistura de duas ou mais línguas, de duas ou mais linguagens.  Na sociedade “glocal”, que mistura local e global, a imagem contaminada, sem assepsias, é língua com grande eficiência de sentido.

Escrevendo e desenhado, em mesa de bar Pedro Gabriel tornou-se um fenômeno nas redes sociais ao postar suas produções, poesias escritas/desenhadas à mão em guardanapos de papel, as quais tratam de amor, de ausência, de paixão, de solidão. Sem se preocupar com a simplicidade de alguns trocadilhos e de algumas outras figuras, o autor mistura a simplicidade da linguagem à singularidade do “arabesco” de alguns ou da maioria de seus traços (que lembram até pichações invasoras). A simplicidade também é um termo pouco alinhado à obra de Rafael Coutinho, principalmente em se tratando de linha narrativa. No romance gráfico Mensur, Coutinho trabalha com a linha de personagens romanescas nômades e degradadas, em um conflito que mistura linhas de tempo à memória traumatizada do herói. Gringo é um adepto de uma luta de espadas surgida há séculos na Europa. Seu rosto ostenta cicatrizes, sua alma também. W, romance de Roger Melo, um dos maiores ilustradores do mundo, sua primeira produção para adultos, alia o tema da cartografia, como representação gráfica, aos segredos das rotas nas grandes navegações. Um dos mapas é tão secreto que se encontra tatuado nas costas do protagonista. O maior segredo da obra, contudo, se encontra na desorientação que reserva à recepção.

O que se tem, nesse conjunto e obras é quase uma advertência sobre o traço de complexidade que é essência da imagem artística contemporânea. A ilustração joga com sentidos que exigem da recepção um olhar atento e sensível ao que provoca esse redesenho do mundo. Levando as representações mentais ao um jogo intenso de compartilhamento, novos sentidos surgem, novas maneiras de compor o humano, o ser, o ler.

 

Miguel Rettenmaier

Fabiane Verardi Burlamaque

 

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