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W, DE ROGER MELLO: SEM MAPAS DE LOCALIZAÇÃO.

W, DE ROGER MELLO: SEM MAPAS DE LOCALIZAÇÃO.

Miguel Rettenmaier

  1. Pra começar (ou continuar)…

 

Leyla Perrone-Moisés (2016), sobre os deslocamentos estéticos da narrativa romanesca, afirma:

O século XX assistiu ao crescimento e ao esplendor do gênero romanesco, sobretudo na França, na Inglaterra e na Rússia. No início do século XX, o gênero foi profundamente modificado por alguns autores: Prost, Joyce, Virginia Woolf. Esses romancistas já não se limitavam a narrar uma história: introduziam na narrativa a exploração psicológica, a reflexão filosófica e estética, e inventaram novas técnicas, o monólogo interior, a mescla de vários segmentos temporais, as digressões ensaísticas, e no caso de Joyce, a experimentação linguística.

A crise na narrativa linear depois de um determinado grupo de reconstrutores ficcionais, assemelhou o ato de renovação do gênero à destruição definitiva do romance.  Em um mundo tamanhamente desprovido de referências, sem linhas de condução claras, estabelecido em um momento em que a racionalidade do realismo coexiste à racionalidade destrutiva das guerras e dos genocídios, a linha balzaquiana de representação do mundo parecia ter chegado ao seu esgotamento. O romance não mais representaria mimeticamente o mundo, assim, chegando a próprio termo como fenômeno estético e histórico. Assim, o experimentalismo seria a espécie pertinente de deslocamento na evolução da narrativa. O que poderia muito bem servir, aqui, de base para que se analisasse o primeiro romance de Roger Mello para adultos.

Um início de discussão, portanto, sobre W, poderia basear-se na antiga discussão sobre a crise do realismo romanesco, alicerçado à crise de valores da civilização capitalista e do humanismo. Qualquer narrativa que fuja dos patamares de localizarão relativamente estáveis do relato romanesco passa pela constatação de uma suposta crise no gênero. Poderia ser referência, desse modo,  na leitura sobre W, uma suposta estética experimental na narrativa de Mello,  apontando para uma nova (e sempre vã) tentativa de mímese em um mundo acometido por uma hemorrágica convulsão nos processos de representação. A questão é que uma abordagem nessa linha tenderia a se voltar mais a confirmação a priori de determinadas bases teóricas do que propriamente à leitura do romance de Roger Mello: faríamos, dessa maneira, da construção de W uma comprovação de um estado de coisas, não um objeto de leitura, o qual merece, de todos as formas um interpretação específica quanto ao processo de (des)construção narrativa que propõe. Pra começar, é melhor tentar entender o romance de Mello antes de mais nada… antes de matar o romance como gênero.

2. Razões para ler W, de Roger Mello.

O brasiliense Roger Mello, nascido em 1965, é um dos mais respeitados ilustradores do mundo. Recebeu o prêmio suíço Espace-enfants em 2002 e no mesmo ano foi vencedor do prêmio Jabuti nas categorias literatura infanto-juvenil e ilustração com Meninos do mangue. Com vários trabalhos premiados, tornou-se hors-concours dos prêmios da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ). Por sua obra como ilustrador, foi indicado para a edição de 2010 do prêmio Hans Christian Andersen, o Nobel da literatura infanto-juvenil. Dono de um traço de  beleza e de sensibilidade, Mello em 2017 lança seu primeiro romance para adultos, no qual a imagem não é forma nem meio, mas é conteúdo, é tema, em uma cartografia de desorientações perturbadoras.

Steven Johnson, produtor de uma provocativa bibliografia sobre as relações entre tecnologias, artes e cultura, descreve os membros velha crítica da sociedade da imagem como acometida por um “complexo de vampiro”: “o negócio dele é rejeitar espelhos” (2001). A questão é que o gênero romance como mídia verbal foi e é também um processo especular. É uma espécie de mapa que orienta o leitor em um caminho mais bem definido do que os que se aprestam, primeiramente, nas linhas de montagem da sociedade industrial e, hoje, na convulsiva realidade sobrecarregada de informação.  O problema é que agora os mapas têm inúmeras camadas em linhas temporais excessivas, desordenadas e descentralizadas, já que os espaços públicos e a economia não mais se refletem no enredo da narrativa realista de causa e efeito. O senso de conexão da narrativa que preza por algum centro de realidade está mediado por novas ligações, mais subterrâneas e intersubjetivas como propusera a estrutura da prosa romanesca no passado. Hoje, a solução simbólica não resolve nem define, mas problematiza ainda mais, como se a resposta estivesse tatuada nas costas de um explorador que não tem espelhos nem leitores confiáveis para auxiliá-lo. W é assim, o mapa está nas costas. No tentativa de localização,  vamos na direção de quatro pontos de leitura (cardeais?)  possíveis, para o qual podemos trilhas alguma interpretação

1º  ponto: Segundo Perrone-Moisés (2016), em citação supra, os autores posteriores à prosa balzaquiana constituiram formas de narrar que buscavam novas experiências ficcionais, entre elas “o monólogo interior, a mescla de vários segmentos temporais”. W nos oferece a prosa “decomposta”. Há um monólogo não permanente, entrecortado pela alteridade de focalização,  mas sobretudo centrado em um personagem: W. Ele é um copista assistente de cartógrafo, mistura tintas, ajuda na produção dos pergaminhos, e, ainda, se aventura pela escrita e pelo desenho, já que os mapas das grandes navegações são repletos de ilustrações. Sua posição subalterna na oficina de cartografia: está logo abaixo de seu parceiro Egon, sendo subalternos, ambos, do cartógrafo mais velho, conhecedor dos armazéns reais portugueses onde se escondem, em sigilo legal,  das rotas de navegação. Em um mundo de mapas secretos, W (a designação do oeste) está sem Egon (suposta designação do Leste (E). A trama de W, a narrativa, começa pela ausência deste, após a morte do cartógrafo, por execução, com o consequente isolamento do protagonista. O mundo sem Leste é incompleto, assim. Não há trajetória possível quando o que poderia ser uma forma esquematizada de ver o mundo, já que o mundo está incompleto.

Há, ainda,  outras leituras possíveis  a essa ausência:  oriente e ocidente são posições que ganham projeções antagônicas (principalmente na cultura ocidentalizada), tais como espiritualidade e materialismo, a metafísica e a lógica, o rito e o conceito, a clarividência e a objetividade, alma e corpo. Na obra de Roger Mello,  W, como protagonista, representa um lado do mundo, o ocidente, sem a luz da “orientação”.

2º  ponto: O mundo incompleto de W busca representações em mapas que apelam a elementos não-verbais para ilustrar o desconhecido. Para mostrar o que vai além da compreensão, por isso, perigoso, a cartografia das navegações antropocêntricas desenhava monstros. Como  fossem ainda resíduos de uma visão não completamente conhecedora do globo, os monstros representam os riscos na rota das descobertas nas terras incógnitas. O monstro também tem a semântica de um guardião de tesouros, promessa que motivou as rotas de descobrimento.  Há, porém, em W, uma outra possível acepção: a incapacidade do verbal representa a complexidade dos fenômenos perante a cognição humana.

3º Ponto: W, o protagonista, tem um mapa tatuado em suas costas, um mapa de rota secreta, não acessível nem mesmo a ele, que é portador desse texto. W, o herói, deixa de ser sujeito,  é uma pele, um pergaminho, que não pode ler a si mesmo nem mesmo ser lido pelo seu oposto, Egon, que lhe é ausente. As costas tatuadas no verso do olhar do protagonista fazem da palavra “verso” parte do mistério, sendo verso um termo associado à poesia. W, incompleto, é a literatura da obra W: a leitura inacessível, perturbada pela falta de referências visíveis.

4ª Ponto: W, a obra, é como se fosse uma experiência sensorial. A leitura se fragmenta em pequenos capítulos e nos capítulos não é incomum que se quebre a linearidade da sentença, em construções visuais. Há, também, uma preocupação com o detalhe associada a um detalhismo lírico que se articula nos monólogos do protagonista. Não propriamente uma descrição, mas uma plasticidade na forma como cada objeto, com suas cores e materiais, surge na narrativa na voz de W. E o olhar minucioso busca cobrir o que  há de “precário e perecível, mundo em acelerada transformação”  (Perrone-Moisés, 2016). W, como criatura, Roger Mello, como criador, tentam salvar as pequenas coisas da vida, “que não têm lugar na historiografia, na ensaística nem mesmo no jornalismo” (PERRONE-MOISÉS, 2016).

3. Perguntas frequentes…

a. W é um romance experimental?

Talvez em outro contexto poderia ser assim considerado. A questão é que, na atualidade, a busca do novo ou o que se chamou de  “make it new” parece não fazer parte da estratégia narrativa nem de Roger Mello, nem de qualquer dos escritores da atualidade. Segundo Perrone-Moisés (2016):

A originalidade ainda é um valor, porque o gosto pela informação nova é atemporal. Mas a maioria dos romancistas atuais não buscas mais, como Joyce ou Guimarães Rosa, uma transformação inovadora da língua ou da técnica narrativa.

b. W é um romance histórico?

Não. Há muitos elementos da historiografia que migram para a narrativa ficcional de Roger Mello. Mas seria demasiado considerar W uma narrativa histórica. Da mesma forma como são inscritos na narrativa personagens históricos, o discurso historiográfico  e o próprio romance são colocados em cheque pela ausência de qualquer referência narrativa estável em W.  A obra, assim, não se encaixa nem como romance histórico tradicional, nem como pós-moderno: o primeiro destaca valores identitários, o segundo discute a historiografia com uma reinterpretação do passado. W é um discurso que antes de interpretar, exige interpretação, exige leitura, como um projeto que se apresenta deliberadamente inacabado.

W, de Roger Mello,  é da Editora Global.

P rte 2 A leitura além dos limites: literatura e imagem.

P rte 2 A leitura além dos limites: literatura e imagem.

“… viver significa ver. A visão é limitada por uma dupla fronteira: a luz intensa, que cega, e a escuridão total.”

Milan Kundera

 

A absoluta presença das mídias de imagem na sociedade atual obriga a uma associação direta e imediata entre leitura e percepção, e isso implica colocar sob uma pluralidade conceitual o que se entende por ler e por constituir sentidos. Para Robert Darnton (2011), “a leitura não é simplesmente uma habilidade, mas uma maneira de estabelecer significado”, numa ordem compreensiva que, na cultura contemporânea, atinge a multiplicidade de plataformas da mesma forma como se irradia para uma diversidade de códigos em distintas matrizes interpretativas. O não-verbal contamina-se com o verbal produzindo novos gêneros discursivos, a imagem se verbaliza e se movimentam, o real se torna um confronto incessante de representação, as quais dialogam entre si, refletem, deformam, reformam e reparam nossa percepção da vida: conforme Santaella (2012) são os signos, a linguagem “a única e magna forma de síntese que dispomos para a ligação entre o exterior e o interior, entre o mundo lá fora e o que se passa dentro deste mundo interior”.  Em se tratando das signos em imagens, Johnson (2001) ainda observa que somos fixados na imagem “não porque tenhamos perdido a fé na realidade, mas porque as imagens têm agora enorme impacto sobre a realidade”.

A noção de imagem, de qualquer forma, tem relação com nossos processos mentais. Segundo Costa (2009), a variabilidade de sentidos para a palavra imagem envolve a percepção visual do mundo que nos cerca e a imaginação, como síntese perceptiva produzida em nossa mente, sendo, portanto, subjetiva, criada por nossa “sensibilidade e ponto de vista” (Costa, 2009). Essa imagem, como base dos processos mentais, abstratos e cognitivos, permitiria a reflexão, a memória, as avaliações e, também, em um âmbito intersubjetivo, o compartilhamento dos objetos internos. Esse intercâmbio de visões de mundo, por meio da linguagem e dos signos, é o fundamento da cultura, associada às capacidades de expressão e de leitura, indispensáveis à comunicação. Desse aspecto surge uma terceira acepção à imagem: a que diz respeito ao que é produzido pelo ser humano para expressar-se. A expressão da subjetividade pelas linguagens gráficas e visuais permite experiências coletivas. Assim, as imagens desenham, focalizam, compreendem e organizam o mundo. Mas isso não é o bastante, as imagens servem para imaginar outros mundos e outras formas de ser no mundo. As imagens imaginam…

Se tudo isso torna a compreensão da imagem algo complexo, o universo da contemporaneidade potencializa a problemática ao atirar em doses industrias saraivadas de signos por toda a parte, desde a mais singela placa informativa ao mais possante aplicativo para mobile. Na realidade, as imagens e os demais códigos comunicativos passam por convergências e sincretismos. De um lado, códigos de tipos distintos passam a ocupar territórios e plataformas comuns ao serem digitalizados em ambientes saturados de signos em fluxo, em uma era chamada de pós-imagética ou hipermidiática, de natureza também interativa, móvel e ubíqua; por outro lado, pela proximidade de tantas referências, a força sincrética das manifestações colabora para a compreensão uma nova ordem de processos mentais, interpretativos e expressivos. A linguagem híbrida, que se apropriava no mínimo de dois sistemas comunicacionais (os enunciados visuais e os enunciados verbais) nos investimentos discursivos do marketing e da publicidade, o que lhes garantia alto poder de persuasão, agora é uma referência expressiva acessível a qualquer usuário da rede. Isso torna a expressão e a arte livres de coerções, já que quase tudo, em termos de expressão, é possível. Assim, as fontes não mais se limitam às delimitações estéticas, tipológicas, ambientais. Uma nova ecologia de códigos intercambiantes contamina os espaços íntimos ou particulares, sem definição precisa entre eles. Essa mesma indefinição torna impossível qualquer fronteira que impossibilite o contato intercultural, interlinguístico. Para  Canevacci (2013), como um  “vírus,  o sincretismo é um contágio, é “ubíquo, pidgin”, como se fosse uma forma de comunicação espontaneamente criada a partir da mistura de duas ou mais línguas, de duas ou mais linguagens.  Na sociedade “glocal”, que mistura local e global, a imagem contaminada, sem assepsias, é língua com grande eficiência de sentido.

Escrevendo e desenhado, em mesa de bar Pedro Gabriel tornou-se um fenômeno nas redes sociais ao postar suas produções, poesias escritas/desenhadas à mão em guardanapos de papel, as quais tratam de amor, de ausência, de paixão, de solidão. Sem se preocupar com a simplicidade de alguns trocadilhos e de algumas outras figuras, o autor mistura a simplicidade da linguagem à singularidade do “arabesco” de alguns ou da maioria de seus traços (que lembram até pichações invasoras). A simplicidade também é um termo pouco alinhado à obra de Rafael Coutinho, principalmente em se tratando de linha narrativa. No romance gráfico Mensur, Coutinho trabalha com a linha de personagens romanescas nômades e degradadas, em um conflito que mistura linhas de tempo à memória traumatizada do herói. Gringo é um adepto de uma luta de espadas surgida há séculos na Europa. Seu rosto ostenta cicatrizes, sua alma também. W, romance de Roger Melo, um dos maiores ilustradores do mundo, sua primeira produção para adultos, alia o tema da cartografia, como representação gráfica, aos segredos das rotas nas grandes navegações. Um dos mapas é tão secreto que se encontra tatuado nas costas do protagonista. O maior segredo da obra, contudo, se encontra na desorientação que reserva à recepção.

O que se tem, nesse conjunto e obras é quase uma advertência sobre o traço de complexidade que é essência da imagem artística contemporânea. A ilustração joga com sentidos que exigem da recepção um olhar atento e sensível ao que provoca esse redesenho do mundo. Levando as representações mentais ao um jogo intenso de compartilhamento, novos sentidos surgem, novas maneiras de compor o humano, o ser, o ler.

 

Miguel Rettenmaier

Fabiane Verardi Burlamaque